domingo, 6 de janeiro de 2008

A senhora que fazia oitenta anos

A senhora que ia fazer 80 anos, há muito o anunciava. Sem prazer.
Sempre associara o acumular de anos a velhice e degradação. O aproximar do fim de mais uma década recordava-lho de forma perturbadora.

Entretanto, mantinha as rotinas de sempre: preparava-se pela manhã e fazia a cama; estendia toalhas húmidas; limpava a casa (“a melhor fisioterapia”, segundo ela); tratava de roupas; preparava refeições.
Fazia, quando necessário, as suas saídas. Sempre com um objectivo definido e tempo programado. Por vezes, ia fazer pequenas compras - tão pequenas que as pudesse pagar com a sua magra reforma; tão leves que as pudesse transportar de uma vez, sem excessivo esforço. Saía também para ir ao correio – para enviar uma cartinha bem tradicional, com envelope e selo, ou para pagar alguma conta, cujo prazo não deixava nunca exceder. É que aquela senhora fazia questão de organizar cuidadosamente cada dossiê e tratar escrupulosamente de cada assunto (seu ou de outrem). Sentir-se capaz de o fazer dava-lhe a satisfação de poder contrariar a idade; dava-lhe a sensação de juventude, para se manter independente.

Mulher autónoma. Batalhadora. Esgotava cada dia no esforço de cumprir rigorosamente os objectivos para sobreviver a esse mesmo dia. (E adiantar mais alguns, sempre que possível…)
Com o permanente desafio de gerir o parco fundo económico disponível, tornara-se exímia na arte de poupar. E então vigiava cada luz inutilmente acesa; contrariava a elevada posição do termostato do aquecedor. Carregava bacias de água do tanque para o quarto de banho, em militante poupança – tão excessiva quanto necessária.

Mês a mês, pagava as despesas habituais do condomínio e ainda as outras, devidas a obras de manutenção inesperadas, com o orgulho de poder proclamar “Esta casa é minha!”. O mesmo orgulho com que quase sempre se recusava a aceitar qualquer ajuda suplementar. E com a alegria de, na primeira ocasião, dar generosamente algo a alguém, com mãos largas.

No seu dia-a-dia, incluía, com frequência, telefonemas, em horário gratuito. Falava aos netos, a amigos distantes, a todos os aniversariantes conhecidos – atenta ao calendário.
Ao fim do dia, finalmente sentada, folheava um jornal ou uma revista; via um telejornal ou um qualquer programa que a ajudasse a serenar as horas de cansaço.

O seu dia de anos aproximava-se e ela anunciou: “Não quero festa!”.
As irmãs perderam a coragem de percorrer os quilómetros que as afastavam, para a virem felicitar. A neta, da outra ponta do país, insistia e a avó repetia-lhe: “Não venhas!”
As filhas conspiraram e decidiram preparar um jantar, em segredo. Viesse quem viesse!

Naquele jogo do gato e do rato, quem primeiro chegou, ouviu: “A menina é teimosa! Eu não disse que não queria cá ninguém?”
Os telefonemas seguiam-se. A vontade de os atender, nula. A contrariedade transbordava, de forma assumida: “Eu não estou feliz por fazer anos!”
Um a um, amigos e netos felicitavam-na e iam-lhe influenciando o discurso: “Eu sei que é sinal de que estou viva e eu quero viver, mas não estou feliz por fazer 80 anos!”
Pouco depois, acrescentava: “O meu neto disse-me: Tu queres ver o Francisquinho crescer, ver a Íris formar-se… Tu queres viver ainda muitos anos, avó…”

A idosa senhora sentira-se, subitamente, mais animada.

Faltava ainda admitir uma mesa posta com vários lugares e notório ar de festa…
“-A Fátima vem? Eu disse-lhe que não viesse!” – vociferou, assim que alguém lhe lançou uma leve suspeita.

“-Ó mãe, se ela vier, é porque quis vir, embora lhe tivesses dito que não viesse! Nós não lhe dissemos nada!”…
Enfim, foram precisas muita habilidade… e paciência!
Primeiro chegou um, depois outro, e o rosto da avó foi-se iluminando…

Sempre houve jantar de anos. Não sobraram lugares vagos, à mesa!
No momento da sobremesa, as velas (até aí escondidas) não apareciam.

“Mas eu jurava que as tinha deixado aqui!”- lamentava-se uma das filhas.
“Deixa lá, dispensam-e as velas” – contrapunha a outra.
“Mas já que as compraram, é pena!”- rematou a aniversariante, igualmente empenhada em colaborar activamente na sua busca!...

Claro que nem as
velas faltaram! Como também não faltaram as fotografias. Mais: a senhora que fez 80 anos apagou as velas por duas vezes, para que o momento do passado dia três de Janeiro ficasse mesmo registado!...

Nem sempre, afinal, podemos fazer a vontade aos nossos “maiores”.
Foi bom ter contrariado esta voluntariosa octogenária.
Com a família em volta, o convívio, a carinho… assim lhe refrescámos a alegria de viver.
(O que ela reconheceu por fim, a seu jeito, meio arrependida…)

Esta senhora foi sempre o meu exemplo. Um exemplo de energia, coragem, tenacidade, generosidade, abnegação, competência…
E ela continuará a servir-me de exemplo, mesmo neste caso, por oposição: eu não quero repetir as fitas da minha mãe quando eu fizer 60, 70, 80 anos ou mais… se tiver a felicidade de lá chegar, tão bem quanto ela!...




4 comentários:

Unknown disse...

Há muito que não lia algo que me tocava tanto na alma. Não sei se é porque leio pouco, ou se porque o que mais leio são contratos pouco dados a sentimentalismos e a uma prosa como quem conta um conto, mas real...

Esta octogenária, a quem muito devo, é de facto uma mulher extraordinária. Toda a sua vida lutou por tudo e por todos, sozinha (!!), com a força de 20 touros e 50 leões.

Faltar-lhe-à agora a força dos 20 touros, ou o rugir dos 50 leões, mas quem a conheceu, sabe que hoje quando baixa a cabeça é para marrar! E quando a levanta, é para rugir!

Aprendi muito com a minha avó. Ensinou-me a ser generoso. Ensinou-me a ser amigo. Ensinou-me a ser responsável. Ensinou-me a não ligar ás birras do meu filho. Ensinou-me boas maneiras. Mas acima de tudo, ensinou-me a amar!

Pois é mãe. Espero, como tu tens estado para essa octogenária, conseguir estar lá para os teus 60, 70 e 80 anos e mais! Pelo menos nesses. E obrigado também a ti por tudo o que me ensinaste.

Todo o amor do mundo para ti e para a avó,

Francisco

Unknown disse...

Está lindo avó!!
Eu estive lá e simplesmente ADOREI :)

Amo-VOS muito :D

Um beijo muito especial da tua neta

Unknown disse...

Simplesmente...enternecedor!
Parabéns!
J.

Manuela Caeiro disse...

Também eu me comovo com os vossos comentários... reconfortantes e encorajadores...