
«(...) Dizem que as fotografias não mentem, mas essa é a maior mentira que já ouvi.
E foi assim, abrindo a gaveta à procura de qualquer coisa, que, sem aviso, me escorregou para as mãos uma fotografia tua tirada durante aqueles quatro dias. Fiquei a olhar-te longamente, longa, longa, longamente. Longamente me fui dando conta de que tudo aquilo acontecera mesmo: eu não o sonhara, durante vinte anos.
Nisso, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem - esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno, que dois amantes felizes e abraçados numa fotografia ficaram para sempre felizes e abraçados.
É por isso que não gosto de olhar para fotografias antigas: se alguma coisa elas reflectem, não é a felicidade, mas sim a traição - quando mais não seja a traição do tempo, a traição daquele mesmo instante em que ali ficámos aprisionados no tempo. Suspensos e felizes, como se a felicidade se pudesse suspender carregando no botão "pause" no filme da vida. (...)»
Miguel Sousa Tavares, No teu deserto, Oficina do Livro, 2009