«(...) A força primordial de uma história é, evidentemente, a de nos transportar, com umas quantas palavras, para outro mundo em que imaginamos as coisas em vez de as sofrer, um mundo onde dominamos o espaço e o tempo, onde pomos em movimento personagens impossíveis, onde povoamos como nos apetece outros planetas, onde insinuamos criaturas sob as ervas dos pauis, entre as raízes dos carvalhos, onde pendem salsichas das árvores, onde os rios sobem para a nascente, onde aves tagarelas raptam crianças, onde defuntos inquietos voltam silenciosos para atalhar a um esquecimento, um mundo sem limites e sem regras onde organizamos à nossa maneira os encontros, os combates, as paixões, as surpresas.
O contador é acima
de tudo o que vem de fora, aquele que reúne na praça de uma aldeia os que nunca
de lá saem e lhes dá a ver outros montes, outras luas, outros terrores, outros
rostos. É o mercador de metamorfoses. É aquele que capta a atenção porque traz
outra coisa. É outro olhar, é outra voz.
Neste sentido, é por meio do "era uma vez" que a superação do
mundo, isto é, a metafísica, se introduz na infância de cada indivíduo e talvez
também na dos povos, muitas vezes ao ponto de aí incrustar uma raiz tão forte
que as nossas invenções humanas serão para nós, durante toda a vida, uma
realidade indiscutível. Após o deslumbramento, o arrebatamento, a história que
nos contaram passa a ser a própria base das nossas crenças, cuja força cega
conhecemos.
Contudo, |a história| não se limita a esta superação, a esta,
se quisermos, transgressão. Por força da sua natureza, porque é
essencialmente uma relação entre seres humanos, está sempre ligada ao público que escuta, por vezes até – de um
modo menos visível, mais secreto – ao contador em pessoa. É como um desses
objetos mágicos de que tantas vezes se serve como, por exemplo, o espelho que
fala.
A história é pública. Ao contar-se fala. (...)»
Jean-Claude Carrière, Nova tertúlia de mentirosos, Teorema, pp.
12-13
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