Chego a Lisboa. Desço na última paragem da Av. de Berna e atravesso a pé a Av. da República. Bem no centro daquele imenso largo inóspito e ruidoso, ladeado pelo intenso tráfego de ambos os sentidos da dita avenida, estende-se por terra uma mancha negra. Cativa o olhar, aquele monte de trapos lançado sobre paralelipípedos de pedra esbranquiçada. O que será?... Lixo?... Gente!... Homem ou Mulher?, não se distingue. Volume sujo e andrajoso; inodoro no espaço aberto; exposto e discretamente encoberto, no meio da praça deserta. Um sem-abrigo não surpreende. (Mau sinal!) Mas ali? Não optar por um local recôndito, um vão de escada, o recanto de uma sacada?... Ali mesmo?! Estendo o olhar, alargando o plano. Por cima dele, um outdoor enorme que me não prendera a distraída atenção... Um cartaz de sorrisos prometedores e afetuosos... Uma mensagem breve. Um sem-abrigo abrigado na esperança... "Queremos Lisboa! +Habitada +Viva +Solidária"
Esta não é uma ação de campanha. (Poderia ser, admito.)
O caderninho vermelho foi sorteado. Calhou-me a mim. Eram três iguais, apenas com cores diferentes; pude escolher um deles e não me decidia, por isso propus o sorteio. - Esquerda ou direita? Sucessivamente, elimina este, elimina aquele... - O Vermelho! O sorteio regozijou quem o deu. Era mesmo aquele que secretamente me destinara! (Mas como havia ainda escolha...) Coincidências!
Lembrei-me, a propósito, daquele meu aluno que passou todo o 1º Período com falta de material escolar. Entre as minhas prendas de Natal, uma continha algo que lhe faltava. Com toda a habilidade de que fui então capaz, no regresso às aulas, pelos Reis, contei o que levava... e contei com a solidariedade generosa e espontânea da gente nova... Ninguém nomeou alguém a quem dar aquele presente... nem Ninguém afirmou precisar... (Para quê? Todos sabiam!) Afinal, concordaram em o sortear, cada qual na esperança de que a sorte lhe sorrisse. Foi tudo feito à vista de todos, um concurso honesto e justo... Todos com a emoção costumeira nestas ocasiões ditadas pela sorte. Eu também, por motivos diferentes... A sorte foi justa dessa vez, por sorte! Nesse dia, foi assim que o acaso, num simples sorteio, ensinou àqueles meninos, melhor do que eu, o valor da solidariedade. Coincidências!...