Muito falamos, hoje em dia, de defesa da língua, pensando sobretudo em grafia, enquanto permanece viva a polémica em torno do Acordo Ortográfico.
A língua, porém, é muito mais do que isso! É sintaxe, é léxico, é fonética... É música - que nos acompanha desde o colo, que aprendemos a reproduzir, que partilhamos com quem nos rodeia, e com a qual aprendemos a comunicar.
A grafia, essa, é convenção social. Bem penosa de aprender... "Ou escreves assim ou cometes um erro" - disseram-nos (disse eu), anos a fio. De repente, subvertem-nos as regras. Penosas de aprender.
Como resistir à estranheza de uma nova imagem gráfica das velhas amigas palavras, aparentemente para nos confundir?... Inevitável, a celeuma.
Confio nos linguistas que, fundamentadamente, assumiram a mudança. Há duas décadas!... Cientes das razões, das necessidades e não menos das implicações e dificuldades. Apesar de tudo isso!
Malaca Casteleiro integrou essa equipa. Foi meu professor. Reconheço-lhe competência e seriedade. Insufla-me confiança.
Assim venço eu a minha resistência. Indiferente a quem se serve do cargo que ocupa para exercer pressão, contrariar legislação...
Duas décadas volvidas, passou, creio eu, o tempo de estudar, debater, decidir..., avaliar questões legais e processuais.
O Acordo Ortográfico chegou às escolas, em setembro.
É tempo de o aplicar.
Em paz.
José Gomes Ferreira, escritor de outras eras, apontou preocupações diversas: o léxico, esse sim.
Partilho um divertido excerto de Gavetas das nuvens.
« - O Sr. já reparou bem num dicionário?... Num dicionário qualquer?... No de Morais, por exemplo... ou no do povo... (Tanto faz!...) Já reparou?... Pois a mim faz-me lembrar, sabe o quê?... Um jazigo de família, ou melhor, um jazigo da nação. Uma espécie de mausoléu de papel, onde gerações de gatos-pingados empilharam séculos e séculos de palavras. Algumas já definitivamente mortas, cobertas de bichos e de coroas saudosas. Outras quase a morrer... E muitas, apenas adormecidas, à espera de um toque de dedos para regressarem à vida diária... onde utilizamos ao todo quantas palavras vivas - diga-me lá quantas? Quinhentas?... Mil?... Nem tantas talvez! Garanto-lhe que, em certos dias, quando subo ao Chiado... ou entro num café da Baixa... e ouço essa gente parda a repisar, de manhã até à noite, os mesmos termos, as eternas expressões... os substantivos inevitáveis... os adjetivos fatais... e o verbo ser, o verbo haver, e o verbo ter, e o verbo fazer... sabe o que me apetece? Saltar para cima de uma mesa ou de um marco postal e gritar furioso aos homens: não deixem morrer as palavras, assassinos! Não deixem morrer as palavras! E algumas são tão bonitas!... "Ardimento", por exemplo... Como é que os portugueses puderam esquecer-se desta palavra tão jovem, tão quente, tão expressiva e teimam em usar "coragem" e "entusiasmo"? E "solerte"? Conhece? Agora já ninguém diz solerte! Porquê? Sim: porquê? "Fulano é solerte?" E "ardiloso"? E "roaz"? E "impérvio"?... E "estólido"? Ouça: e se eu lhe chamasse estólido, gostava? Seu estólido!... »
Glossário:
ardiloso - astucioso, manhoso
estólido - desprovido de inteligência, parvo, tolo, insensato
impérvio - intransitável, impenetrável, inacessível, insensível
roaz - roedor, destruidor
solerte - finório, astuto, velhaco
Sugestão de leitura: Acordo Ortográfico.
Imagens - da NET.
4 comentários:
Todo o texto é delicioso e não só a citação.
Como diz o Caetano Veloso a minha lingua é minha pátria!
SEu,
Papibaquigrafo
Obrigada, Anónimo!
"A minha pátria é a língua portuguesa", como afirmou Fernando Pessoa e cantou Caetano. Por isso mesmo se pretende que convirja, a nível gráfico.
O seu pseudónimo estimulou-me curiosidadee e pesquisas.
Descobri que talvez se trate de um travalínguas.
Mas admito que seja uma palavra composta: um "pai"(papi) que "escreve"(grafo) "versos"(baquio). :-)
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria.
Caetano Veloso – “Língua”
Quando Caetano Veloso compôs esta canção, em 1984, a noção de pátria, é já o espaço de interações afetivas, sociais, históricas e culturais. “Minha pátria é minha língua” disse sim senhor, Pessoa no seu tempo e na sua dimensão, na sua alma, inspirando Caetano.
Hoje vermo-nos inseridos num contexto de globalização, e necessitamos defletir sobre seus efeitos, procurando nunca perder a noção e valor do local, valorizando a diferença, a diversidade e o multiculturalismo. A língua não é apenas meio de comunicação escrita. Representa a história e a alma de um povo, seus costumes, seus valores. Necessitamos de valorizar a língua mãe, a “mátria”, nossa língua que, depois de ser portuguesa, é brasileira, mocambicana, angolana e verdeana, num etecetra. de tantos dialetos, gestos, sons e cores. Porque eles têm um jeito doce de falar a língua portuguesa. Um jeito delicioso de pensar a lingua portuguesa. Temos de apreciar a nossa língua, fazer valer nossos falares. Valorizar a troca dos Bs pelos Vs da nossa língua é valorizar o povo, a pátria, é querer “frátria”.
Reduzir tamanha dimensão à grafia, às regras normativas do Dr. ardiloso, não tem graça. Graça têm as histórias abemsonhadas do Mia Couto ou os contos do José Gomes Ferreira.
Deixo de ser papibaquigrafo (travalinguas), para me assumir corajosamente como anarquista estólido da ortografia em defesa de nós e das palavras.
Pátria... Mátria... Frátria... Curiosa distinção.
Boa explanação.
Obrigada!
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