"Um homem é feito de livros"...
José António Gomes, Sobre o Dia Internacional do Livro Infantil (*)
Um homem faz-se de livros. Falo do homem que os leu e, por isso, os guarda em si (alguns, pelo menos); e também do que os não leu, nem lerá nunca. Porque este simplesmente ignora que a sua vida é feita de livros. Ou antes, condicionada pelos livros: a Ilíada e a Odisseia, Platão e Aristóteles, a Bíblia e o Corão, O Capital, a obra de Freud… – que sei eu, que tantos livros tenho ainda para ler?
Mas talvez nenhuns outros tenham feito mais um homem do que aqueles que leu na infância, pois se é garantido que um livro não transforma o mundo, certo é também que pode mudar a vida de um leitor.
A gradual consciência disto me levou a guardar na estante, como num relicário, os livros que os meus dias de menino me pousaram no colo. E aqueles outros que o magro porta-moedas de criança de vez em quando me permitia adquirir, com a aquiescência dos pais.
Grandes livros? Longe disso (tirando um ou outro). Mas que poderia eu saber, nessa época, dos grandes livros que enformavam o mundo? Para o menino que eu era, grandes eram, sem dúvida, os que lia.
Sapato de Fogo e Sandália de Vento, de Ursula Wolfel, ensinava-me a alegria de ter um pai que nos leva a conhecer mundo, estrada fora. E que, por meio de parábolas (ou seja, de palavras), vai dando forma e sentido às comoções e conquistas, aos medos e enganos com que a vida nos torna o caminho suave ou pedregoso. Talvez um outro livro, Companheiros de Spártaco, de um obscuro Eric Houghton, me tenha inoculado a alergia à injustiça, à exploração do homem pelo homem. Terá sido A Gruta, de Nan Chauncy, a tornar-me para sempre sensível aos gestos de rebeldia? E os livros de aventuras que li até aos dez anos e que, sem sair de Portugal, me deram as primeiras imagens da Hungria, da Alemanha, da Andaluzia, dos Andes, da América do Norte, do Alasca ou da Nova Zelândia? (Lá ia eu à procura do mapa do mundo.)
Muitos outros livros, certamente, me fizeram. Mas como não recordar a vez primeira que li a descrição de abertura de A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, estampada nas páginas do meu livro de Português do primeiro ano do liceu? Menino que amava a areia e o mar, os rochedos e os navios, como poderia eu ficar indiferente a essa espécie de poema em prosa que vinha envolver a praia numa aura de estesia, coisa nunca vista por mim nem “ouvida” (sim, porque ler, ler por hábito apura também o ouvido interior, aquele que nos diz se uma frase escrita possui, ou não, a eufonia, a elegância, a respiração necessárias). Pela primeira vez, o real, o “meu” real tomava a forma de palavras, isto é, convertia-se em linguagem. E que linguagem. Linhas de prosa que apetecia ler em voz alta saboreando cada palavra como se na língua se sentisse o sal da maresia, o granulado da areia, o rumor da água e das plantas e bichos marinhos. Com A Menina do Mar aprendi, talvez, sem disso ter ainda consciência, que as palavras não se limitam a dar nome às coisas, as palavras são, elas próprias, coisas – como a poesia, lida mais tarde com devoção, viria confirmar.
Depois, terei entendido que a vida de cada um é uma construção, feita pelo próprio, pelos outros, pelo vasto mundo, e obedecendo a um projeto que em nós se vai esboçando. Mostraram-mo as biografias lidas na infância: de Joana d’Arc, de Mark Twain, de Pasteur, de Daniel Boone, de Abraham Lincoln… Mas também a de Camões, contada, em cromos de banda desenhada, pelos belos desenhos de Carlos Alberto Santos e pelo texto de José de Oliveira Cosme.
Por isso, como não amar os livros, esses companheiros de sempre, na saúde e na doença, até que a morte nos separe? E como não sublinhar, uma vez mais, o papel essencial do livro infantil na sempre inacabada construção de um homem?
(Sublinhados nossos.)
(*) Dia Internacional do Livro Infantil - 2 de Abril, data do nascimento de Hans Christian Andersen (Odense, Dinamarca, 1805).
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