sábado, 24 de julho de 2010

Entrevista a Alberto Manguel

Alberto Manguel é ensaísta, escritor, tradutor… e, sobretudo, leitor. Quando era adolescente, foi anagnosta: leu em voz alta para Jorge Luis Borges, que cegara. E fê-lo durante 17 anos, experiência esta que relatou na sua biografia Con Borges (2004).
Nasceu em 1948, em Buenos Aires. Tem dupla nacionalidade: argentino e canadiano, por opção. Vive actualmente em França, onde tem uma vasta biblioteca pessoal de cerca de 30.000 títulos, num antigo mosteiro.
Recentemente, de passagem por Lisboa, deu uma entrevista ao Público, de que destaco algumas passagens, relacionadas com os leitores e o acto de ler, os livros e os ebooks… Estas que se seguem:

A sua obra está praticamente toda ela dedicada ao lado maravilhoso da leitura, do acto de ler. A sua paixão pela leitura vem de onde? Nasce-se leitor ou uma pessoa torna-se leitora?
Penso que somos animais leitores. Vimos ao mundo com uma certa consciência de nós próprios e do que nos rodeia e temos a impressão de que tudo nos conta histórias: a paisagem, o rosto dos outros, o céu; em tudo encontramos linguagem. Tentamos desentranhá-la, tentamos lê-la. Nesse sentido, não podemos existir enquanto seres humanos sem a leitura. Inventámos a linguagem escrita, a linguagem oral, para tentarmos comunicar essa experiência do mundo, para nos contarmos histórias e através delas, falar dessa experiência.
No meu caso, o conhecimento do mundo passou sempre pelos livros. Tive uma infância um pouco particular: o facto de o meu pai pertencer ao corpo diplomático fez com que viajássemos muito e que eu não tivesse nenhum sítio onde me sentisse em casa. A minha casa estava nos livros. Regressar à noite aos livros que conhecia, abri-los e constatar com imenso alívio que o mesmo conto continuava na mesma página, com a mesma ilustração, dava-me uma certa segurança e um certo sentido do lar.


Mas nem toda a gente é leitora...
Nem toda a gente é leitora, mas acho que, no fundo, é porque as circunstâncias fazem que não sejamos todos leitores. A possibilidade está em todos nós. O que quero dizer é que suponho que há pessoas que nunca se apaixonam, suponho que há pessoas que nunca viajam, suponho que há pessoas que não têm uma certa experiência do mundo. E da mesma maneira, existem muitas pessoas que não são leitoras. Mas a possibilidade está dentro de nós.
A proporção de leitores numa dada sociedade nunca foi muito grande – seja na Idade Média, seja no Renascimento ou no século XX. Os leitores nunca foram a maioria. Se, por exemplo, todos os espectadores de um único jogo de futebol comprassem um livro, uma tarde, esse livro passaria a ser o best-seller mais espectacular da História da literatura.  
(…)

Estamos a ler de forma diferente?
Penso que o que está a acontecer, como acontece em tempos de crise, não é o facto de termos passado a ler de forma diferente, mas de estarmos a tornar-nos mais conscientes do que significa ler, ser leitor, do que é a literatura. Estamos a interrogar-nos sobre essa actividade simplesmente porque ela está ameaçada. Antes de o urso polar entrar na lista das espécies em perigo, ninguém falava dos ursos polares – não era um tema de conversa corrente [ri-se]. Surgiu porque os ursos polares estão em perigo. É porque os leitores sentem um perigo que começaram a reflectir sobre o que significa o acto de ler.

(…) O que perdemos quando passamos do livro em papel para o ebook?
(…) Se eu tivesse de passar seis meses no Pólo Norte, dava-me muito jeito levar um livro electrónico – se houvesse baterias que durassem seis meses. O problema não está na invenção de novos suportes para a leitura. Surge quando esses suportes são promovidos por razões puramente económicas e nos tentam convencer a substituirmos tudo por esse único suporte. 
A indústria faz constantemente isso e é o que está a acontecer com os livros. Existe actualmente nos Estados Unidos um movimento para acabar com os livros em papel nas bibliotecas das universidades. São tontices: o problema não tem a ver com a electrónica nem com o livro impresso, tem a ver com um comerciante ganancioso que quer vender computadores.

(…)

Não sente frustração quando pensa que há jóias literárias que lhe passam ao lado?
Não. Quando era adolescente, angustiava-me pensar que nunca iria poder ter nem ler todos os livros que queria. Mas essa angústia passa-nos e transforma-se numa espécie de alívio [ri-se]. É óbvio que não vou ler tudo o que é publicado, é óbvio que nem vou ter conhecimento de tudo aquilo que é publicado. Aliás, prefiro concentrar-me em certos livros.
O tipo de leitura que pratico agora, nesta idade – embora continue a ler algumas coisas novas – é a releitura. Por exemplo, há já mais de dois anos que leio um canto de Dante todas as manhãs, antes de tomar o pequeno-almoço [ri-se] – com um comentário diferente, tomando notas. Já completei esse percurso umas dez vezes. É um tipo de leitura que faço por prazer – e que me parece infinito. Nunca vou conseguir saber o suficiente acerca da "Divina Comédia", mas felizmente, já não tenho aquela angústia. É como pensar em sítios que nunca visitarei, pessoas que nunca conhecerei. Que alívio! [ri-se]
(…)

Há umas gerações uma pessoa não erudita, mas culta, tinha a obrigação de ter lido certos livros. Hoje, essa ideia parece ter sido esquecida.
A questão é que deixámos cair a noção de “ser culto”. Agora, não passa pela cabeça de ninguém dizer que uma pessoa é culta ou não é culta. Como já disse, há uma perda de prestígio do acto intelectual. Hoje, uma pessoa pode perfeitamente admitir que é estúpida, que passa o seu tempo a jogar jogos de vídeo ou que só se interessa pela moda. Não vai chocar ninguém. Antes, tínhamos vergonha de dizer coisas dessas, mas hoje é realmente espantoso ver o número de pessoas adultas que jogam jogos totalmente imbecis.

Há leitores que só querem ler coisas novas.
Mas essa é a tal política do supermercado. Não vamos ao supermercado comprar um produto do ano passado, mas coisas que ainda não passaram do prazo. É o mesmo com os livros: agora, têm um prazo de caducidade. Passadas três semanas, o que não foi vendido desaparece. É uma política muito perigosa.


Mas ler os clássicos na escola continua a fazer sentido? “Os Lusíadas” de Camões, por exemplo.
Claro que continua. Os grandes clássicos não foram escolhidos por ninguém; não há um comité que decide que Homero é importante. O que houve foi cem gerações de leitores que disseram que esse livro é importante. É isso que define o clássico, é a obra que não se esgota junto dos seus leitores. E isso continua a ser importante, embora muitos leitores – e muita gente – não o reconheçam.  
As crianças têm uma imaginação activa, uma inteligência activa. Querem aprender a pensar. (…) Se me confiarem uma turma de crianças, comprometo-me a fazer com que elas leiam Camões com muitíssimo entusiasmo. É preciso dizer-lhes que são inteligentes e que vão conseguir ler essa obra. As crianças adoram palavras complicadas, termos difíceis, histórias onde não se percebe tudo. Mas a indústria não quer isso, quer tornar as coisas mais simples – e então fazem resumos, simplificam, publicam coisas idiotas para crianças e acabam por não publicar nada. Apenas jogos de vídeo.
A nova geração continua a ter gosto pela leitura. Para o ser humano, o instinto de sobrevivência não se resume à necessidade de comer e beber; também inclui a necessidade de pensar. E isso é verdade seja onde for – aconteceu nos campos de concentração, acontece nas favelas mais pobres, acontece nas situações mais extremas. Continuamos a pensar, a criar, a interrogarmo-nos. E temos de lutar por isso. Não somos cegos; podemos dizer que não.
(…)

A leitura e a escrita vão desaparecer? Há quem pense que vamos regressar a uma espécie de tradição oral high-tech, graças a computadores capazes de comunicar através da fala.
A tradição oral não tem nada de mau. O problema é quando a tradição não é oral, mas feita apenas de conversas que nunca chegam a ter lugar. Já eliminámos até os locais onde conversar. Ainda há alguns cafés, mas todos têm televisão, música. E mesmo esses estão a desaparecer.
Nós também iremos provavelmente desaparecer. Mas se sobrevivermos como seres humanos – o que não é seguro – fá-lo-emos com a linguagem escrita, com a linguagem falada e com a linguagem lida. Vamos sobreviver com os nossos livros. Se desaparecermos, os livros também desaparecerão. E no fundo, isso talvez seja uma coisa óptima para o planeta – para as árvores, para as formigas, para os ursos polares...

                                                                 Foto da NET: Biblioteca de Alberto Manguel
Público, 05/07/2010 
Entrevista de Ana Gerschenfeld 
Esta entrevista pode ser lida na íntegra aqui.



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